1.Charles Lepierre

Uma história de António Carlos Lepierre Tinoco poderia ter início em diversos momentos, a narrativa teria muito por onde iniciar-se. A família Tinoco tem longa permanência em solo lusitano e certamente múltiplos momentos dignos de registo. Mas António não é apenas Tinoco, ele também é Lepierre. E esse Lepierre é indissociável do Tinoco que lhe sucede, desde o orto. E esse Lepierre tem origem em França. E esse é o local onde esta história decide assentar o seu arranque. Em Paris. Na Paris do século XIX. Precisamente em 1867.

Ano em que nasce Charles Lepierre, futuro prestigiado químico francês, avô materno de Tinoco. Jovem prodígio que aos vinte anos de idade, em 1887, detém já o título de Engenheiro Químico atestado pela École Supérieure de Physique et de Chimie Industrielles. Nada de verdadeiramente surpreendente, se tido em conta que teve mestres disciplinares tão ilustres como Pierre Curie ou Auguste Michel-Levy. Logo, logo, Charles Lepierre exercia a sua profissão numa fábrica de açúcares no Norte de França. Essa experiência laboral, contudo, não duraria muito. Um ano volvido Charles Lepierre rumaria a Sul. Não ao da França, mas ao da Europa. Melhor dito, ao Ocidente da Europa. Se, dos seus ricos e longos setenta e oito anos de vida, os primeiros vinte e um ocorreram em solo francês, os restantes desenrolar-se-iam em solo português; nele deixando uma marca duradoura. O ano que marca a sua chegada a Portugal é, pois, o ano de 1888. O homem que marca a decisão, a ocorrência, a oportunidade, chama-se Roberto Duarte da Silva. É este cabo-verdiano, natural da ilha de Santo Antão, aprendiz de boticário, viajante incansável {Macau, Hong Kong, a famosa Farmácia Azevedo em Lisboa, Paris e, finalmente e em definitivo, em 1889, Montparnasse}, químico a pulso, e seu professor em Paris, que está na origem dessa mudança na vida de Charles Lepierre. Ao que parece também o funchalense José Júlio Rodrigues, lente de Química na dita Escola Politécnica, terá tido papel importante no convite a Charles Lepierre. Tudo aponta para que um, em Paris, e o outro, em Lisboa, tenham sido os motores de persuasão e negociação necessários à formalização do convite, por parte do Governo de Portugal, para a preparação e criação do Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, bem como para chefiar os trabalhos de Química na Escola Politécnica da mesma cidade, assim como no aceitar do mesmo por parte do químico francês.

Uma vez aceite o desafio, rumou a Lisboa. Mas também aqui não se demorou. Logo no ano seguinte, 1889, subiu a Coimbra. Aí se instala e aí, a partir de 1891, se mantém à frente do Laboratório de Microbiologia da Universidade de Coimbra durante vinte anos. Neste período, torna-se o primeiro professor de Química a leccionar na Escola Industrial e Comercial de Brotero, hoje Escola Secundária de Avelar Brotero. E é igualmente nesse período que a sua ligação às águas começa a tomar forma quando, em 1897, procede à análise científica da água da nascente da Curia {provadas as qualidades das águas é criada, dois anos depois, a Sociedade das Águas da Curia} e quando, em 1903, realiza, pela primeira vez, uma análise bacteriológica à Água Termal do Luso classificando-a de “Água muitíssimo pura”.

Em 1911, no esteio da ampla reforma do Ensino Universitário em Portugal, Charles Lepierre chega de novo a Lisboa, desta feita, já capital republicana. O Instituto Industrial e Comercial de Lisboa que conhecera vinte anos antes dava lugar ao moderno {assim o pretendiam as mentes por detrás da reformas em curso} Instituto Superior Técnico, sob a orientação do engenheiro Alfredo Bensaúde. Aqui ingressa como professor, no recém-criado curso Químico-Industrial {dos cinco cursos de Engenharia originais}, e aqui se manterá ao longo de 26 anos de docência, ficando para sempre ligado a este campus. Em Novembro de 1937 jubila-se.

Paralelamente, tem ainda saber e forças para, em 1919, aquando da famosa “Lei das Águas” que reorganizou os Serviços Hidraúlicos, ser nomeado professor do Instituto de Hidrologia {do qual foi presidente a partir de Julho de 1933} e ainda, em 1935, ser nomeado director do Laboratório do Instituto de Conservas de Peixe, cargo que manteve até à data da sua morte. Esta “experiência hidrológica” levou-o ainda, em 1922, a prefaciar um guia prático das águas minero-medicinais portuguesas, da autoria do ilustre médico Fernando da Silva Correia, na altura a frequentar o Curso de Hidrologia, em Lisboa.

Nas palavras institucionais do website do IST ficamos a saber que, embora

«a análise química fosse a sua área principal, realizou também trabalhos nas áreas da química inorgânica, bromatologia e biologia geral, bacteriologia e higiene, hidrologia, além de outras. A análise da sua obra mostra, para além da versatilidade e poder de assimilação das novas técnicas físico-químicas que iam sendo introduzidas, a capacidade de responder a problemas concretos que o meio exterior punha à Universidade e que está na base da tradição de prestação de serviço do Laboratório da Análises do IST. Citamos, nesta fase um novo método de ataque e dosagem do volfrâmio (área em que o Laboratório de Análises teve um papel predominante durante a 2.ª Guerra Mundial), um trabalho analítico imenso sobre águas minero-medicinais e pelo que é particularmente conhecido, estudos sobre o pinhão (1932), os pimentões (1934) e, em colaboração com Peres de Carvalho, professor de Química Orgânica do Instituto, um estudo sobre o os azeites (1930) de grande relevância para a indústria de conservas de peixe em Portugal. Neste domínio fez também estudos de grande fôlego sobre a presença de chumbo nas conservas e a sua toxicidade, sobre a presença de estanho, sobre o valor alimentar das conservas de vários peixes, etc.»

Charles Lepierre teve uma vida plena e rica em Portugal. Aqui chegou na sua maioridade, aqui deixou a marca do seu trabalho, aqui constituiu família e aqui exalou pela última vez em 17 de Novembro de 1945. Nesse mesmo ano o governo francês adquirira terrenos em Lisboa, na zona das Amoreiras, e sete anos passados, precisamente no mesmo dia, e cumprindo assim o desejo e promessa do ministro da Educação da altura, José Caeiro da Mata, é inaugurado o Lycée Français Charles Lepierre. E assim se consumava, para a posteridade, a marca de Charles Lepierre em Portugal.